No dia 24 de junho, a Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou os Princípios Globais para a Integridade da Informação, um conjunto de diretrizes essenciais para enfrentar os desafios globais da desinformação e do discurso de ódio. Anunciados pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, em Nova York, esses princípios delineiam recomendações e ações urgentes destinadas a conter os danos causados pela disseminação de informações falsas e pelo discurso de ódio, fenômenos que ameaçam a democracia, os direitos humanos, a saúde pública e a ação climática.
Para comentar as medidas, conversamos com Matheus Soares, que é jornalista e atua como repórter da iniciativa “Desinformante”. Matheus cobre as áreas de Inteligência Artificial e Internacional e é Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes ECA/USP.
Organizada pela Aláfia Lab, Ponteio Comunicação, Informação e Cultura, o Desinformante produz análises sobre o impacto da desinformação na sociedade e discute formas de combatê-la, reunindo jornalistas e pesquisadores para criar espaços de articulação entre diversos atores sociais engajados na construção de um espaço digital democrático.
Leia, a seguir, uma análise desses princípios e suas implicações, especialmente no contexto brasileiro. Saiba como essas diretrizes podem ajudar a enfrentar os desafios contemporâneos e a fortalecer a integridade da informação.
Considerando os desafios da desinformação e da circulação de discurso de ódio on-line, como você vê o direcionamento dado pela ONU, através desses princípios, para lidar com essas questões a nível global e, claro, considerando a realidade brasileira?
A publicação dos Princípios da Integridade da Informação é um passo importante no combate global à desinformação e ao discurso de ódio. Nos últimos anos, as Nações Unidas também vêm entendendo que esses fenômenos podem ter impactos negativos nas democracias e na vida cotidiana das pessoas mundo afora, atrapalhando o próprio desenvolvimento da humanidade. Esse documento, bem como os anteriores, mostra que a organização intergovernamental está empenhada em criar articulações internacionais para debater e fortalecer as práticas de integridade da informação.
Apesar dos princípios não serem obrigações que os países precisam seguir, eles funcionam na prática como uma chancela de um organismo importante no cenário geopolítico mundial.
Isso se torna importante principalmente no Brasil, pois estamos passando por um momento em que o tema da desinformação está ganhando resistência no debate legislativo. Isso pode ser visto, por exemplo, no recente engavetamento do Projeto de Lei 2630, que criava regras de responsabilidade e transparência para as plataformas digitais, e no atraso da votação do Projeto de Lei 2338, que aborda o desenvolvimento de IA no país.
Dessa forma, com essa publicação, a ONU não só demonstra que está atenta às questões da desinformação, mas também reforça que esse é um problema global, que todos os países devem enfrentar para que as democracias e sociedades continuem minimamente saudáveis a longo prazo.
Os princípios também abordam o uso de Inteligência Artificial (IA). Na sua opinião, quais são os maiores riscos associados ao uso da IA no contexto da integridade da informação?
As Inteligências Artificiais generativas podem impactar diretamente a integridade da informação. Claro que usos positivos dessas tecnologias existem, como o auxílio em atividades do dia a dia; mas elas também abrem a possibilidade para agentes maliciosos as utilizarem para espalhar informações falsas com o intuito de causar danos na sociedade.
Diversos pesquisadores apontam preocupações, por exemplo, em relação a automatização dos processos de produção e disseminação de desinformação em massa. Além disso, as deepfakes também aparecem como elementos críticos para os próximos anos, pois à medida que elas ficam mais reais e de alta qualidade, também podem trazer confusão às pessoas.
E isso já é realidade. Desde o final do ano passado, diversos países que realizaram eleições tiveram que lidar com as deepfakes políticas. Argentina, Indonésia e México foram alguns dos países em que esses conteúdos sintéticos apareceram com fins políticos. A Índia também foi um país que se destacou bastante neste cenário. Sem uma regulamentação específica sobre uso de IA no contexto eleitoral, nos últimos meses os indianos viram uma explosão de diversos tipos de deepfakes, muitas delas criadas pelos próprios candidatos.
O empoderamento dos indivíduos nos ambientes on-line é um dos princípios elencados pela ONU. Na sua opinião, o que significa, na prática, empoderar indivíduos dentro do ecossistema de informação? Como garantir que as pessoas tenham controle sobre sua experiência on-line?
Muito se fala no papel que os agentes emissores possuem na cadeia da desinformação, mas há também o papel de quem está na outra ponta desse processo: as pessoas. São as pessoas que vão receber os conteúdos falsos e que vão repassar as informações a conhecidos, formando assim suas perspectivas de mundo.
Empoderá-las é uma ação fundamental para que elas consigam não só desenvolver um pensamento crítico em relação ao que veem na Internet, mas também se proteger de ações de agentes maliciosos e das próprias plataformas e grandes empresas de tecnologia, que atualmente estão mais preocupadas nas próprias receitas.
Em relação a esse último ponto, um exemplo interessante foi a recente notícia de que a Meta estava permitindo que os usuários do Instagram proibissem o uso dos seus conteúdos para o treinamento da IA da empresa. A possibilidade foi dada, de fato, mas o caminho para que se chegasse ao bloqueio era extenso e burocrático, numa aparente tentativa de tornar tudo muito difícil para o usuário.
Por isso, ações de educação midiática e cívica, por exemplo, são importantes para que os cidadãos saibam quais são seus direitos e como funcionam as dinâmicas digitais. É importante que as pessoas entendam o que são algoritmos e como eles recomendam conteúdos, o que é uma IA generativa e como os dados podem ser usados para treiná-las.
O problema aqui é que, num primeiro momento, essa compreensão pode até ajudar as pessoas a buscarem seus direitos, mas sem uma regulação que obrigue as plataformas a serem mais transparentes com os cidadãos, acredito que pouco será feito. No caso da Meta, que citei acima, o benefício foi dado porque aqui temos a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Quais são os desafios atuais enfrentados por jornalistas e trabalhadores da mídia na busca por reportar informações de maneira segura e aberta, principalmente em contexto de mídia independente?
Diversos tipos e níveis de desafios se apresentam atualmente para os jornalistas e trabalhadores de mídia. Um deles é, sem dúvidas, as violências e os ataques online sofridos pela categoria, episódios que vêm aumentando nos últimos anos e que colocam em risco a segurança, a integridade e a liberdade do trabalho desses profissionais, principalmente, as mulheres, pessoas negras e LGBTQIAP+.
Não estamos falando de simples críticas ou questionamentos, esses ataques vêm para deslegitimar a qualidade do trabalho e para ferir ou inibir o(a) jornalista.
Quando falamos de mídia independente outro desafio muito presente é a sustentabilidade do projeto, justamente porque vivemos atualmente uma crise do modelo de negócios do Jornalismo que se arrasta há anos e, aparentemente, não terá fim tão cedo. Isso é reforçado pela recusa cada vez maior das pessoas de lerem notícias e pelos hábitos de consumo, atravessados diretamente pelas plataformas digitais.
Olhando para o futuro, quais são as suas expectativas em relação à adoção e aplicação desses princípios pela comunidade jornalística e por diferentes setores da sociedade? Como todos os interessados no assunto podem colaborar?
Penso que os princípios poderão servir de norte, numa espécie de “boas práticas”, para que gestores, jornalistas e a sociedade como um todo possam agir para a construção de um ambiente digital mais seguro para todos. Está cada vez mais evidente que esse é um trabalho em conjunto, colaborativo, com cada um fazendo a sua parte.
É importante também que nós avancemos no debate sobre as regulações das plataformas digitais e da Inteligência Artificial, de forma a criar regras que acreditamos ser adequadas para combater a desinformação, o discurso de ódio e garantir a segurança digital tanto dos jornalistas como das pessoas em geral.