A frase da Ângela Mendes, filha do ativista Chico Mendes, é um convite para conhecer o trabalho do Amazônia Vox. O projeto cresceu e hoje figura entre os destaques em inúmeros eventos de jornalismo e entre as listas que apontam inovações na área.
Daniel Nardin, idealizador e coordenador do Amazônia Vox, contou para a Aurora News a inspiração e os desafios por trás do projeto. Atualmente a equipe reúne ações como Banco de Fontes de conhecimento da região, rede de freelancers e incentiva a prática do Jornalismo de Soluções na Amazônia.
Nardin reconhece que a cobertura da Amazônia muitas vezes é cercada de preconceitos e estereótipos. Ele recomenda leituras e diz que busca contar histórias da Amazônia a partir da perspectiva dos amazônidas, destacando não apenas os problemas, mas também as respostas aos desafios.
A seguir, leia a entrevista completa que aponta perspectivas bem atuais para a transformação do jornalismo.
De onde veio a inspiração e como foi tornar o Amazônia Vox uma realidade?
Atuei em diferentes áreas da comunicação e em todas elas a colaboração costuma ser um ponto em comum. Uma das principais ferramentas do jornalista é sua agenda de contatos. Ou melhor: durante muito tempo foi assim e agora existem outros caminhos, que nem sempre são fáceis.
Então, o ponto de saída foi desenvolver um banco de fontes, considerando que é um serviço que pode ser útil para muitos jornalistas, ao mesmo tempo em que trabalha a importante mensagem que aqui se defende bastante: “se forem falar de nós, nos ouçam”, como diz a frase de Ângela Mendes, ativista ambiental que utilizamos em nossa home (do site).
A partir disso, fomos somando outras iniciativas que são frutos de conversas e formações, como o banco de freelancers – algo também útil, que gera oportunidade no território, bem como o jornalismo de soluções. Para a inspiração virar ideia e a ideia realidade, tivemos o suporte e apoio técnico de todos do Instituto Bem da Amazônia, profissionais e amigos.
Ainda entre tanta gente que merecia ser mencionada, coloco o Alexandre Orrico, que estava no International Center for Journalists (ICFJ). Por fim, como cristão, considero a fé um componente fundamental na nossa vida, inclusive profissional, dando a coragem e o foco de pensamento para tomar decisões. E colocando no nosso caminho tanta gente que ajudou e ainda ajuda muito, pois é um projeto que só faz sentido se for assim, colaborativo.
Quais foram os maiores desafios encontrados ao lançar e desenvolver o Amazônia Vox?
Primeiro é entender que as dificuldades e desafios vão sempre existir e que vale nossa determinação e foco. Indo para a parte prática e operacional, posso mencionar o diálogo que é necessário com muita gente. Temos como público: o “interno”, que são as fontes e freelas da Amazônia, que podem se cadastrar, e devem ser incentivados a integrarem a rede, e o “externo”, de quem pode usar o serviço, sendo ou não da própria Amazônia. Depois vem a parte tecnológica, que tem o apoio gigante do desenvolvedor Samuel Burlamaqui.
E aí um esforço com diferentes profissionais e colegas em vários momentos, pois não queríamos que fosse um “Belém Vox” e sim um “Amazônia Vox”, com pessoas e participação dos nove Estados da Amazônia, mostrando a nossa diversidade e as “amazônias” que coexistem na Amazônia.
Como vocês lidam com questões de preconceito e estereótipos na cobertura da região?
Temos uma rica literatura que aborda essa questão, não só na cobertura, mas em diversos outros campos, inclusive na ciência. Posso mencionar rapidamente e recomendo a leitura de “A invenção da Amazônia”, de Neide Gondim e “Amazônia: colônia do Brasil”, de Violeta Loureiro. Porém, como jornalista de soluções, busco focar em caminhos para dar resposta ao problema. Um exemplo que serve de inspiração nessa linha é a Iniciativa Africana de Jornalismo de Soluções, que trabalha justamente isso, de que mais histórias sejam contadas sobre a África, mas a partir dos africanos e não só de seus problemas e sim também de como estão respondendo aos seus desafios.
O que poderíamos colaborar era em concentrar fontes e freelas para facilitar a conexão. Ainda temos muito por fazer e melhorar, mas estamos trilhando esse caminho, de maneira horizontal e dialogando com muita gente que já atua nesse sentido há um bom tempo na região.
De que maneira o Amazônia Vox utiliza a tecnologia para melhorar a cobertura jornalística da região?
Acho que melhorar depende muito de quem faz e aí temos um ecossistema todo de mídia para olhar. Tem muita produção excelente local e regional. Não precisamos inventar nada, basta conhecer mais, principalmente quando consideramos a mídia independente, que está inovando e criando o tempo todo.
Um ponto que podemos colaborar é oferecer a ferramenta do banco de fontes e de “freelas”, além de apoiar a produção de histórias de soluções. É uma contribuição apenas, e usamos a tecnologia mais básica da internet e que precisa das conexões reais, entre pessoas. Ir além do algoritmo e investir mais em investigação, em histórias. Repito: já tem muita coisa sendo feita nesse sentido e queremos apenas somar ao muito que já é feito.
Como você espera que o Amazônia Vox mude a forma como a imprensa, no geral, cobre a região amazônica?
Não temos essa pretensão, até porque o juízo de valor quem faz é o indivíduo, o leitor, o internauta. E só estamos somando. O que esperamos, isso sim, é facilitar as conexões para abrir mais espaço para as potentes vozes da Amazônia nas narrativas produzidas sobre a região. Estamos trabalhando na ferramenta, mas quem vai usar é o jornalista que vai produzir.
Por isso também é importante incluir nas produções os profissionais locais, pois é um ponto para aprofundar a cobertura, evitar deslizes – ainda que sejam de boa fé – e também gerar renda no território.
Com o jornalismo de soluções acho que podemos inspirar e mostrar que um mesmo tema pode ter diferentes olhares e vertentes. Claro que o jornalismo de denúncia é absolutamente fundamental, deve ser respeitado e incentivado. Mas, como diz a Solutions Journalism Network, pela perspectiva do jornalismo de soluções buscamos contar a história toda.
É mostrar, aos poucos, que a solução da Amazônia está nela mesma, não precisa vir de fora, mas com cuidado e empatia nesse tom, mais na linha das conexões. Por isso reforço que nossa preocupação é somar com um ecossistema já bastante rico e diversificado de produção jornalística na Amazônia, que precisa ser mais conhecida e valorizada pela própria região, pelo Brasil e por quem busca informações da Amazônia fora dela.
Você pode nos explicar como funcionam as duas ações do Banco de Fontes e o Banco de Freelancers para profissionais da região?
Basicamente, na parte de fontes fizemos inserções de uma base inicial com informações públicas. Mas desde o princípio liberamos para que cada um fizesse o próprio cadastro, para que assessorias de órgãos, universidades, coletivos, terceiro setor, entre outras, possam acrescentar suas fontes que sempre oferecem para a imprensa. Ou mesmo aquelas organizações que não possuem alguém de comunicação, ou lideranças e pesquisadores, possam se cadastrar.
O jornalista sempre busca fontes diferentes, busca variar vozes e ali estamos criando algo nesse sentido, inclusive para colaborar no esforço de muitos para reduzir a invisibilidade de vozes.
Por outro lado, o banco de freelancers é 100% autocadastro. O bom é que somamos mais de 700 fontes e cerca de 550 freelancers, dos nove estados da Amazônia. Ainda vamos fazer um refinamento e enriquecimento dessas bases, para melhorar a busca, mas será um novo passo.
Para quem usa – busca fonte ou freela – basta acessar o site, fazer a busca semântica por tema, por exemplo, e encontrar um breve perfil, e os contatos que a fonte disponibilizou. Já no caso de freela – se você precisa de um fotógrafo, por exemplo – em uma cidade da Amazônia, pode fazer a busca pelo território e aparecem os profissionais que estão cadastrados naquela região, com o perfil, atividades que exerce e os contatos.
Estamos aprimorando o tempo todo, mas já temos relatos bem positivos de quem achou fontes para entrevistar e de quem contratou ou foi contratado através da plataforma para algum trabalho. Lembro que o cadastro ou a consulta é totalmente gratuita e liberada.
Como se dá, na prática, uma abordagem de jornalismo de soluções no Amazônia Vox? Pode dar exemplos de histórias ou reportagens que sejam marcantes na trajetória de vocês com essa abordagem?
Ainda estamos no começo, mas já produzimos algumas séries. Posso mencionar uma que veio através de bolsa da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e Dart Center, da Universidade de Columbia. Veja só: 95 dos 100 municípios com piores indicadores de cobertura pré-natal do Brasil estão na Amazônia Legal. Isso é muito grave. Mostramos o problema. Trouxemos os dados, que são do SUS, mas buscamos o “desvio positivo”. Não o “melhor”, mas onde, ao longo dos anos, estava tendo alguma melhoria, o que indica consistência de resposta, ao menos nos números.
Então contamos a história do que é feito em um município, Abaetetuba, que implementou uma unidade fluvial para atender a comunidade ribeirinha e tem tido números bem expressivos, adaptando os horários de atendimento, contratando pessoas da comunidade, entre outras. Então buscamos percorrer os pilares do jornalismo de soluções: resposta ao problema; as evidências da efetividade da resposta e o conhecimento de como é feito.
Por fim, o quarto pilar, que é demonstrar as limitações para a resposta, os motivos que não permitiram começar antes ou ser melhor do que já é. Esse é um exemplo e a reportagem foi feita em episódios e com um curto documentário que foi exibido no Canal Futura. O material completo está aqui: https://amazoniavox.com/desafiosprenatalnaamazonia.
Vocês terão agora a Formação Online Amazônia Vox que leva em consideração a diversidade étnico-racial, regional e de gênero na definição dos participantes. O que vocês esperam dessa ação e quem tem colaborado no desenvolvimento?
A Fundação Lemann é uma parceira que tem nos apoiado em algumas iniciativas e essa é uma delas. Vamos finalizar com um número bem expressivo de inscrições e isso mostra o quanto a comunicação na Amazônia é potente e está ciente do momento, que exige atualização e formação constante.
Isso vale para jornalista e comunicador de qualquer parte do mundo, ainda mais para nós que estamos em um território que todo mundo fala que precisa ouvir mais as vozes locais. Some a isto o fato de que vamos receber a COP 30 em 2025 e creio que o evento não é um ponto final e sim um ponto de passagem, acelerando e intensificando ainda mais a centralidade da Amazônia na agenda político-midiática global.
Quais são as futuras inovações ou melhorias que vocês planejam implementar no trabalho do Amazônia Vox?
Temos alguns projetos em andamento. O primeiro é a melhoria do site em si, visualmente e tecnologicamente, facilitando o uso e dando mais destaque para nosso conteúdo, além da ferramenta. Também queremos melhorar a busca da ferramenta, com mais filtros e segmentação. Outro ponto é a nossa newsletter, que estamos tratando como um serviço mesmo de levar as oportunidades que existem para os amazônidas conhecerem mais e se inscreverem. E outras que no momento certo a gente conta.
E do ponto de vista financeiro, como vocês têm estudado e implementado formas de garantir a sustentabilidade e manter essa atividade jornalística? Essa é uma preocupação de muitos editores de veículos locais, independentes e especializados
Sim, esse ponto é crucial. É preciso dedicação e bons profissionais e isso só é possível com recurso, além da tecnologia. Percebemos – e ainda estamos aprendendo – que é preciso diversificar as fontes de receita, onde os grandes editais ajudam muito, sem dúvida, mas é preciso encontrar mais sustentabilidade.
É por isso que estamos desenvolvendo diferentes produtos, apostando no serviço para o usuário da plataforma, para as pessoas e nas conexões que ela pode propiciar. É um desafio enorme, mas estamos com muita gente boa ao lado. A segurança do caminho certo e a tranquilidade para trabalhar veio com o apoio do ICFJ, via bolsa Knight, que recebemos esse ano para desenvolver a plataforma, compreendendo o impacto que podemos realizar em conjunto com muitas vozes e iniciativas.
É nesse sentido que somos muito gratos a tantos que tem permitido que a gente tenha dado pequenos, mas importantes passos. E ser convidado por vocês (para essa entrevista) é uma amostra disso, que mesmo com muito por fazer, é de aquecer o coração perceber que já estamos realizando algo e a importância disso. Para encerrar, reforço que é um projeto colaborativo, em um momento que essa palavra ganha mais força, em detrimento da competição, de um tempo da comunicação que já não vale mais nesse momento que a gente vive.